terça-feira, novembro 23

Quase esqueci de mim


Eu tive muitos cães durante a minha infância, pois costumava levar os que encontrava na rua para a minha casa. Meu pai, gostando de animais e sabendo o quanto poderiam nos ensinar sobre relacionamentos, às vezes me deixava ficar com eles. Se davam um pouco de trabalho, também poderiam auxiliá-lo na ilimitada tarefa de nos ensinar a crescer.

Dentre tantos, eu tive um grande amigo vira-latas que me acompanhou durante toda a adolescência, de nome Paxá. Lembro de ter para com ele um amor consciente, a ponto de entender que ele não ficaria comigo para sempre, já que cães não vivem tanto quanto a maioria de nós, super-humanos.

Quando me lembrava disso, chegava bem pertinho daquele olhar imenso e lhe dizia com os meus olhos - dado que essa era a nossa melhor comunicação – algo terrivelmente piegas, mas eficiente:

- Sei que um dia você não vai estar mais aqui, então eu vou lhe dar um abração agora, porque quero lembrar para sempre dessa sensação gostosa. Lembrar que fomos muito amigos, que você existiu para mim e que eu amei você tudo o que eu podia, que fiz tudo o que eu podia.

Mais tarde, eu comecei a ter essa atitude também as pessoas que amo, entendendo que a vida é efêmera.

Mas foi somente bem mais velha que eu aprendi a me olhar no espelho e a fazer isso comigo mesma. Afinal, também quero ter sempre a certeza de que eu me amei tudo o que eu podia.

Há pouco tempo, recordando o meu bairro, lembrei da minha adolescência, dos meus antigos pensamentos e cheguei a me espantar com o quanto eu já havia esquecido sobre uma pessoa inteirinha que eu fui. Desconfio que eu não amava aquela menina descabelada que eu era, mas ela/eu, do seu jeito, tentava amar a todo mundo. Procurei-a na minha nova imagem no espelho e recordei frações do meu dia-a-dia. De uma adolescente chata, mas interessante, cheia de manias e teorias engraçadas, que se subestimava muito.

É difícil recordar de tudo o que ela/eu gostava e sentia, pois muitos detalhes se perderam ou estão trancafiados em algum esconderijo. Bem guardados para, quem sabe, evitar essas bisbilhotices futuras. Talvez um dia eu os encontre em alguma empreitada arqueológica da velhice – e ainda irão dizer que estou senil.

Estava pensando em fazer uma festa para essa menina, comprar-lhe um presente e até levá-la para um passeio, no qual eu poderia contar-lhe um pouco sobre mim, tentando relembrar suas alegrias e alguns desejos irrealizados.

Eis que o tempo não é uma ilusão? Os acontecimentos não estão dando voltas em torno de nós? Então por que eu não posso visitar aqueles dias? Ou ela me visitar? Por que não posso ter um encontro comigo mesma, mais nova, perguntar como eu estou e conversar? Quem disse que eu não posso? Nada que vive dentro de mim é passado e nem ninguém.

Eu já sei onde ela está, nos diários que eu guardei, mas que ficaram no Brasil... Quando eu voltar, teremos esse encontro. Vou contar sobre o mundo e as coisas que conheci e perguntarei a ela sobre seus sonhos, os que ela nunca contou para ninguém, todos aqueles que eu já esqueci.

Desejo do dia: aproveitar Hong Kong.

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