sexta-feira, janeiro 17

Comecei a escrever uma história mulherzinha. Não tenho como fugir dela porque os personagens ficam conversando dentro da minha cabeça.

Ao mar
No final da tarde, recebi um e-mail de Laura. Não sei de onde tirei ser sua amiga se até hoje ela não me olha direito nos olhos. Mandou-me uma foto de Ipanema e escreveu:
“Eu só queria vir para a praia, deitar entre a areia e o oceano, onde a vida está constantemente em agonia. Onde as criaturas se enterram e as abelhas morrem. É o mais próximo que a maioria dos seres humanos chega do mar. É um limite. 
Tenho medo dessas águas, como nunca tive.
Quando eu era uma menina e admirava o mar e tantas outras maravilhas, pensava que esse mundo com certeza era sagrado e que, portanto, eu também o era. Mas agora só penso que tudo o que existe é melhor, mais perfeito e mais importante do que eu.
À beira desse oceano, tenho certeza de que a única coisa extraordinária que tenho a oferecer à vida, é a minha morte.
Se todas as aventuras já foram contadas e todas as histórias vividas, por que continuamos a nascer nessa terra escura? Por que todos os tempos parecem ter sido melhores do que este? Nunca existiu tanta gente. E a cada dia que passa, torno-me mais insignificante, diante dos milhões que nascem.
Se em tempos distantes eu acreditava que tudo não passava de um teste para me fortificar e me preparar para uma grande missão na vida, hoje sei que não passa da mesma miséria na qual nascemos todos. A mesma estúpida miséria sem nenhum sentido.
Se eu tive alguma chance, se todos a temos, ela passou para sempre. É inútil acreditar que ainda é possível. Os anos passaram e eu não tive tempo de ser ninguém. Não estou velha, mas é só velhice o que tenho pela frente.
Deus? Se existir, só tenho medo dele, que me fez esse ser humano impotente. Somente para rir das minhas esperanças perdidas. De todos os sonhos que tive antes de dormir. De todas as manhãs que chegaram com indiferença.
Não tenho nem mesmo um pecado significativo do qual me arrepender, além dessa constante infidelidade de pensamento.
O Rio de Janeiro é lindo! Avise a todo mundo que vou ficar morando aqui.”
Assim que terminei a leitura, aconteceu o primeiro dos muitos eventos estranhos que se seguiram à mensagem de despedida de Laura. O tempo parou pela primeira vez. Olhei para o relógio e eram cinco para as seis. Trabalhei mais um pouco e ainda eram seis horas. Em cerca de meia hora, ainda eram seis e dez.
Tive que responder àquela bêbada, imaginando-a de biquine, estendida à beira da praia, fervendo, consumida pelo seu constante mau-humor e protegida pela sua ainda mais constante sorte.
Escrevi uma resposta: “Por mais cética que uma pessoa deseje ser, por mais racional que seja seu modo de encarar a vida, é a vida. Não há nada de normal nisso. Mesmo que você não seja capaz de ver, de ouvir ou de sentir. Ainda que esteja paralisada em um corpo inerte. Ainda haverá você e não há nada de normal em estar aqui. Eu não posso explicar o significado de tudo isso, nem ensinar a ninguém como viver porque eu só vivi desta vez. Se vivi outras vezes, não adianta, porque eu não me lembro (portanto, é inútil considerar isso). No fim das contas, eu sou a coisa mais extraordinária que eu posso imaginar. Se eu estou aqui trabalhando e você está estirada em Ipanema, é porque esse mundo não é justo. É tudo o que eu sei. Tome uma caipirinha por mim. E não se preocupe. Ninguém espera você aqui tão cedo.
Enviei a resposta e esperei para ver se o tempo voltava a correr normalmente.
Não sei porque lembrei que a maluca não fez a primeira comunhão. Conclui que isso influencia bastante nas suas filosofias de ressaca.
Há muito tempo que ela faz da minha caixa de entrada um confessionário. Apesar de tudo, foi a melhor chefe que já tive. Não sei se ainda é.
Resolvi levantar e avisar ao pessoal que provavelmente Laura não voltaria até o final do Carnaval.
Recebi um What´s up: ”Você não é muito esperta, mas é sincera. Não sei bem qual é a vantagem, mas obrigada mesmo assim.”
Mais tarde outro: ”Você não sabe de nada.”
Em alguns segundos: ”É lua cheia.”
Eu ainda não poderia entender a relação entre essas mensagens e a série de eventos estranhos que se seguiriam.
A sua última mensagem foi uma foto tirada de dentro do mar, para a praia de Ipanema, com os dizeres: ”o mar mergulhando em mim.”
 
Desejo do dia: escrever.

Um comentário:

Neria disse...

Estive fora por alguns dias e só hoje sobrou um tempinho para uma visita. Muito bons os seus textos.
Desejo do dia: que tudo esteja bem com vocês.